As comemorações oficiais de datas específicas são sempre uma
forma de os poderes públicos participarem activamente nos combates da memória.
A análise desses cerimoniais permite identificar elementos de consenso e de
dissenso entre as representações do passado assim construídas; observar as
dimensões de rigor, problematização, efabulação ou mesmo manipulação das
imagens criadas; e compreender tudo isso à luz das condições do presente em que
se insere. «A memória colectiva é uma construção que muda com os tempos, as
relações de força e os interesses do momento», lembrava, ainda recentemente,
Benoît Bréville (1).
Pela primeira vez em 50 anos de democracia, a Assembleia da
República decidiu comemorar o dia 25 de Novembro de 1975 com uma sessão solene
evocativa, com discursos e honras militares, e fazê-lo, não num aniversário
redondo da data, mas no ano das comemorações do cinquentenário do 25 de Abril.
Num paralelismo comemorativo desvalorizador ou até substitutivo da data da
Revolução dos Cravos, as direitas parlamentares entenderam-se para celebrar a
derrota de um golpe tentado por alguns sectores da extrema-esquerda militar.
Omitindo amplamente o clima então vivido de violência
política, bem como os golpes tentados pela extrema-direita, como o de 11 de
Março de 1975, os discursos dos representantes dos partidos das novas e velhas
direitas repetiram exercícios que a historiografia não confirma. Seria preciso
«dizer às novas gerações» que «a democracia começou no 25 de Novembro», sem o
qual «não teríamos eleições livres e pluralismo» (Paulo Núncio, pelo
CDS-Partido Popular, partido que votou contra a Constituição de 2 de Abril de
1976, onde se plasmava esse mesmo sistema eleitoral pluralista que Abril
defendera contra a ditadura).
Afirmou-se também que o 25 de Novembro teria sido «o triunfo
da moderação sobre o extremismo», que foi identificado como uma «democracia
popular de inspiração marxista» ou o «socialismo revolucionário marxista do
PREC [processo revolucionário em curso]», tendo passado a uma «democracia
liberal e pluralista», com «liberdade de escolha real», «direito a propriedade
privada» em vez de «ocupações e nacionalizações» (Miguel Guimarães, pelo
Partido Social Democrata [PSD], que na actual deriva populista de direita até
esqueceu os nacionalizações recentes que fez na banca e todos os extremismos da
governação com a Troika).
Outros até nos desejaram um «feliz 25 e Novembro!, que
finalmente celebramos» (olhe que não…), para afirmar que é preciso «combater o
radicalismo em nome da liberdade», que seria ter «a visão do indivíduo no
centro da política» (Rui Rocha, pela Iniciativa Liberal, orgulhoso do quanto o
neoliberalismo corta com o nexo — propriamente democrático — entre liberdade e
igualdade, entre indivíduo e colectivo).
Quanto ao líder do partido da extrema-direita, André Ventura,
depois de reafirmar o que já fora dito («este é o verdadeiro dia da liberdade
em Portugal»), quis romper com a democracia («esta democracia não nos serve e
não temos medo de o dizer») num discurso discriminatório e securitário (a
ameaça agora seria a «bandidagem» dos «bairros de Lisboa e Porto», estando ele
«ao lado das forças de segurança e da ordem»), xenófobo e instigador de ódios
(contra o que diz ser uma «imigração descontrolada», porque «muitos dos crimes
sexuais são cometidos por imigrantes»), de teor fascista e de apologia de
crimes de guerra («Como dizia o Jaime Neves sobre a guerra no Ultramar, “quando
nos mandavam limpar, nós limpávamos tudo” — e já começámos [indicando as
bancadas da esquerda]».
Quando, mais tarde, o presidente da Assembleia da República
José Pedro Aguiar-Branco (PSD), ensaiou uma tentativa de aplacar incómodos e
discordâncias dizendo que «hoje somos felizes», «temos um chão comum debaixo de
nós», já não teve propriamente grande efeito tranquilizador. Mas teve a
vantagem de resumir o que estas comemorações oficiais das direitas
parlamentares procuraram fixar na memória colectiva. A saber, que o 25 de
Novembro, entronizando os «moderados» contra os «radicais», teria sido a
vitória da liberdade no sentido liberal contra a liberdade no sentido
socialista ou comunista, com tudo o que isso teria permitido depois — da
integração europeia às demais modalidades de inserção do país na globalização
neoliberal, no capitalismo financeirizado. Para a imagem que as direitas agora
pretenderam criar, pouco importa se isto mais parece uma forma (hostil) de pôr
o PS na gaveta ou, muito menos, se lhe falta adesão à realidade da história
imediata que se seguiu. É que, após o 25 de Novembro, as direitas, além de
terem falhado a ilegalização do Partido Comunista Português (PCP), não puderam
impedir a continuação das nacionalizações e da reforma agrária, nem a aprovação
de um texto constitucional que consagrava esses e outros «excessos» que tanto
as perturbou.
Porquê investir tanto, neste momento, em construir esta
imagem do que aconteceu? Há certamente uma dimensão de «ajuste de contas» com o
passado, que só agora foi possível encenar. Mas é mais do que isso. As direitas
estão apostadas em fabricar um novo consenso em torno das escolhas possíveis
nas democracias, e para isso é fundamental dizer quais estão fora do «chão
comum» — a seguir os media torná-las-ão ainda mais invisíveis. Neoliberais e
ultraliberais encontram-se aqui. Apresentando-se como «moderadas» e sensatas,
ou aos gritos e com murros na mesa, o que as direitas «tradicionais» e as
extremas-direitas estão a fazer é a reivindicar para si o monopólio das
rupturas societais, políticas e económicas. As manipulações históricas também
servem para preparar o terreno para as grandes viragens, pois contribuem para
domesticar as radicalidades políticas e sociais que podem opor-se-lhes em
resposta à sua violência (em particular sobre as classes populares).
O neoliberalismo, essa violência dos que tentam passar por
«moderados», é de facto um projecto extremista, que ameaça a democracia no que
ela tem de mais próprio: a ligação entre liberdade e igualdade, a qual exige
ser declinada, não apenas em «valores» — como as instâncias europeias gostam de
dizer, e ainda recentemente António Costa repetiu no discurso de tomada de
posse na presidência do Conselho Europeu (29 de Novembro) —, mas em políticas e
instituições, a começar pelas que compõem o Estado social, os serviços públicos
e as que regulam as relações laborais. Ora, os neoliberais, que ainda há pouco
impuseram a países como Portugal um austeritarismo ligado a uma crise
financeira, preparam-se agora para fomentar um novo ciclo de austeridade,
relacionada com uma crise «guerreira». Alguém tem dúvidas do que fará aos
orçamentos dos Estados um aumento brutal das despesas com a defesa e a
segurança? Das consequências que isso terá sobre os direitos, os salários, as
pensões, os serviços públicos, as políticas sociais, culturais, ambientais? Ou
sobre quem vai lucrar, em termos políticos e económicos, com a militarização e
a securização na Europa?
A mesma União Europeia neoliberal que retirou aos Estados
instrumentos de política económica, actualmente concentrados no Banco Central
Europeu e no sistema financeiro internacional, vem agora dizer que não há
alternativa a fazer os investimentos necessários, como disse António Costa na
mesma ocasião, a «sermos mais autónomos em defesa e segurança». Mas onde estava
a União Europeia quando a arquitectura internacional destinada a garantir a paz
desde o pós-guerra foi sistematicamente corroída, desrespeitada, para favorecer
todas as escaladas bélicas? «Temos de demonstrar que respondemos eficazmente às
preocupações das pessoas», acrescentou o novo presidente do Conselho Europeu.
Fazer de 2025 um ano de justiça e paz seria um bom começo.
* Sandra Monteiro – Le Monde Diplomatique – edição portuguesa
– Dezembro 2024
(1) «A história face aos manipuladores», Le Monde
diplomatique — edição portuguesa, Outubro de 2024.