quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

OPINIÃO: A violência das novas direitas

 


As comemorações oficiais de datas específicas são sempre uma forma de os poderes públicos participarem activamente nos combates da memória. A análise desses cerimoniais permite identificar elementos de consenso e de dissenso entre as representações do passado assim construídas; observar as dimensões de rigor, problematização, efabulação ou mesmo manipulação das imagens criadas; e compreender tudo isso à luz das condições do presente em que se insere. «A memória colectiva é uma construção que muda com os tempos, as relações de força e os interesses do momento», lembrava, ainda recentemente, Benoît Bréville (1).

Pela primeira vez em 50 anos de democracia, a Assembleia da República decidiu comemorar o dia 25 de Novembro de 1975 com uma sessão solene evocativa, com discursos e honras militares, e fazê-lo, não num aniversário redondo da data, mas no ano das comemorações do cinquentenário do 25 de Abril. Num paralelismo comemorativo desvalorizador ou até substitutivo da data da Revolução dos Cravos, as direitas parlamentares entenderam-se para celebrar a derrota de um golpe tentado por alguns sectores da extrema-esquerda militar.

Omitindo amplamente o clima então vivido de violência política, bem como os golpes tentados pela extrema-direita, como o de 11 de Março de 1975, os discursos dos representantes dos partidos das novas e velhas direitas repetiram exercícios que a historiografia não confirma. Seria preciso «dizer às novas gerações» que «a democracia começou no 25 de Novembro», sem o qual «não teríamos eleições livres e pluralismo» (Paulo Núncio, pelo CDS-Partido Popular, partido que votou contra a Constituição de 2 de Abril de 1976, onde se plasmava esse mesmo sistema eleitoral pluralista que Abril defendera contra a ditadura).

Afirmou-se também que o 25 de Novembro teria sido «o triunfo da moderação sobre o extremismo», que foi identificado como uma «democracia popular de inspiração marxista» ou o «socialismo revolucionário marxista do PREC [processo revolucionário em curso]», tendo passado a uma «democracia liberal e pluralista», com «liberdade de escolha real», «direito a propriedade privada» em vez de «ocupações e nacionalizações» (Miguel Guimarães, pelo Partido Social Democrata [PSD], que na actual deriva populista de direita até esqueceu os nacionalizações recentes que fez na banca e todos os extremismos da governação com a Troika).

Outros até nos desejaram um «feliz 25 e Novembro!, que finalmente celebramos» (olhe que não…), para afirmar que é preciso «combater o radicalismo em nome da liberdade», que seria ter «a visão do indivíduo no centro da política» (Rui Rocha, pela Iniciativa Liberal, orgulhoso do quanto o neoliberalismo corta com o nexo — propriamente democrático — entre liberdade e igualdade, entre indivíduo e colectivo).

Quanto ao líder do partido da extrema-direita, André Ventura, depois de reafirmar o que já fora dito («este é o verdadeiro dia da liberdade em Portugal»), quis romper com a democracia («esta democracia não nos serve e não temos medo de o dizer») num discurso discriminatório e securitário (a ameaça agora seria a «bandidagem» dos «bairros de Lisboa e Porto», estando ele «ao lado das forças de segurança e da ordem»), xenófobo e instigador de ódios (contra o que diz ser uma «imigração descontrolada», porque «muitos dos crimes sexuais são cometidos por imigrantes»), de teor fascista e de apologia de crimes de guerra («Como dizia o Jaime Neves sobre a guerra no Ultramar, “quando nos mandavam limpar, nós limpávamos tudo” — e já começámos [indicando as bancadas da esquerda]».

Quando, mais tarde, o presidente da Assembleia da República José Pedro Aguiar-Branco (PSD), ensaiou uma tentativa de aplacar incómodos e discordâncias dizendo que «hoje somos felizes», «temos um chão comum debaixo de nós», já não teve propriamente grande efeito tranquilizador. Mas teve a vantagem de resumir o que estas comemorações oficiais das direitas parlamentares procuraram fixar na memória colectiva. A saber, que o 25 de Novembro, entronizando os «moderados» contra os «radicais», teria sido a vitória da liberdade no sentido liberal contra a liberdade no sentido socialista ou comunista, com tudo o que isso teria permitido depois — da integração europeia às demais modalidades de inserção do país na globalização neoliberal, no capitalismo financeirizado. Para a imagem que as direitas agora pretenderam criar, pouco importa se isto mais parece uma forma (hostil) de pôr o PS na gaveta ou, muito menos, se lhe falta adesão à realidade da história imediata que se seguiu. É que, após o 25 de Novembro, as direitas, além de terem falhado a ilegalização do Partido Comunista Português (PCP), não puderam impedir a continuação das nacionalizações e da reforma agrária, nem a aprovação de um texto constitucional que consagrava esses e outros «excessos» que tanto as perturbou.

Porquê investir tanto, neste momento, em construir esta imagem do que aconteceu? Há certamente uma dimensão de «ajuste de contas» com o passado, que só agora foi possível encenar. Mas é mais do que isso. As direitas estão apostadas em fabricar um novo consenso em torno das escolhas possíveis nas democracias, e para isso é fundamental dizer quais estão fora do «chão comum» — a seguir os media torná-las-ão ainda mais invisíveis. Neoliberais e ultraliberais encontram-se aqui. Apresentando-se como «moderadas» e sensatas, ou aos gritos e com murros na mesa, o que as direitas «tradicionais» e as extremas-direitas estão a fazer é a reivindicar para si o monopólio das rupturas societais, políticas e económicas. As manipulações históricas também servem para preparar o terreno para as grandes viragens, pois contribuem para domesticar as radicalidades políticas e sociais que podem opor-se-lhes em resposta à sua violência (em particular sobre as classes populares).

O neoliberalismo, essa violência dos que tentam passar por «moderados», é de facto um projecto extremista, que ameaça a democracia no que ela tem de mais próprio: a ligação entre liberdade e igualdade, a qual exige ser declinada, não apenas em «valores» — como as instâncias europeias gostam de dizer, e ainda recentemente António Costa repetiu no discurso de tomada de posse na presidência do Conselho Europeu (29 de Novembro) —, mas em políticas e instituições, a começar pelas que compõem o Estado social, os serviços públicos e as que regulam as relações laborais. Ora, os neoliberais, que ainda há pouco impuseram a países como Portugal um austeritarismo ligado a uma crise financeira, preparam-se agora para fomentar um novo ciclo de austeridade, relacionada com uma crise «guerreira». Alguém tem dúvidas do que fará aos orçamentos dos Estados um aumento brutal das despesas com a defesa e a segurança? Das consequências que isso terá sobre os direitos, os salários, as pensões, os serviços públicos, as políticas sociais, culturais, ambientais? Ou sobre quem vai lucrar, em termos políticos e económicos, com a militarização e a securização na Europa?

A mesma União Europeia neoliberal que retirou aos Estados instrumentos de política económica, actualmente concentrados no Banco Central Europeu e no sistema financeiro internacional, vem agora dizer que não há alternativa a fazer os investimentos necessários, como disse António Costa na mesma ocasião, a «sermos mais autónomos em defesa e segurança». Mas onde estava a União Europeia quando a arquitectura internacional destinada a garantir a paz desde o pós-guerra foi sistematicamente corroída, desrespeitada, para favorecer todas as escaladas bélicas? «Temos de demonstrar que respondemos eficazmente às preocupações das pessoas», acrescentou o novo presidente do Conselho Europeu. Fazer de 2025 um ano de justiça e paz seria um bom começo.

* Sandra Monteiro – Le Monde Diplomatique – edição portuguesa – Dezembro 2024

(1) «A história face aos manipuladores», Le Monde diplomatique — edição portuguesa, Outubro de 2024. 

ATLETISMO: 40ª Corrida de S.Silvestre de Avis

No passado sábado, dia 28 de dezembro, disputou-se na vila de Avis, a corrida de S. Silvestre de Avis, uma das mais emblemáticas e antigas d...